Compreendendo a respeito da hanseníase
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A hanseníase é uma doença infectocontagiosa crônica, causada pela Mycobacterium leprae, que acomete principalmente o sistema nervoso periférico e a pele. É uma doença de alta infectividade, porém baixa patogenicidade, ou seja, pessoas quando expostas a esta bactéria possuem grandes chances de se contaminar, contudo poucas irão desenvolver a doença. Apresenta baixas taxas de mortalidade e letalidade, no entanto possui altas taxas de morbidade.
O que é hanseníase?
A hanseníase é uma doença crônica, infectocontagiosa, cujo agente etiológico é o Mycobacterium leprae, um bacilo álcool-ácido resistente (BAAR), parasita intracelular obrigatório, predominante em macrófagos e na célula de Schwann.
A doença acomete principalmente os nervos superficiais da pele e troncos nervosos periféricos, mas também pode afetar os olhos e órgãos internos. O microrganismo multiplica-se preferencialmente em ambientes com temperaturas mais baixas e em um ritmo muito lento. Por esse motivo é que a hanseníase apresenta um tempo longo de incubação.
Se não tratada na forma inicial, a doença quase sempre evolui, torna-se transmissível e pode atingir pessoas de qualquer sexo ou idade, inclusive crianças e idosos. O tratamento está disponível em qualquer unidade de saúde.
Imunopatologia
A hanseníase é uma doença cuja apresentação clínica e evolução dependem, diretamente, do sistema imunológico do paciente.
A imunidade celular (Th1) apresenta melhor resposta frente as infecções causadas por microrganismo intracelulares. Nesse tipo de imunidade, os linfócitos T liberam citocinas que ativarão os macrófagos para destruir os agentes intracelulares. Esses macrófagos conseguem agrupar-se, formar granulomas e impedir que a doença se dissemine. Portanto, pacientes em que há predomínio da imunidade celular, haverá cura espontânea da doença ou doença localizada. Esses indivíduos terão o tipo chamado de hanseníase tuberculoide. A interleucina 12 (IL-12), IL-2 e TNF-alfa e interferon-gama estão relacionadas à imunidade celular.
A imunidade humoral (Th2) não apresenta grande eficácia frente aos microrganismos intracelulares. Nesse tipo de imunidade, há uma grande produção de anticorpos, e não há ativação dos macrófagos com capacidade de formar granulomas. Sendo assim, pacientes em que há predomínio da imunidade humoral, haverá doença disseminada e apresentarão a chamada hanseníase virchowiana. A interleucina 4 (IL-4) e IL-10 estão relacionadas à imunidade humoral.
A maior parte dos pacientes apresenta um grau de imunidade entre a imunidade celular e a imunidade humoral. Tais pessoas se enquadram como portadores da hanseníase dimorfa e, dependendo do tipo de imunidade que prevalece no paciente, ela pode ser subclassificada em hanseníase dimorfo-tuberculoide e hanseníase dimorfo-virchowiano.
Transmissão
A principal via de eliminação e de contágio do bacilo é a via aérea superior e, de forma menos importante, áreas da pele e/ou mucosas erosadas. A principal forma de contágio é inter-humana e apenas os doentes bacilíferos não tratados são transmissores.
Quando um indivíduo é infectado pelo bacilo de Hansen, na maior parte das vezes, apresenta cura espontânea e, um menor número de casos, manifestará a forma inicial da doença, chamada de hanseníase indeterminada. A grande maioria dos pacientes com hanseníase indeterminada tende a apresentar cura espontânea, e apenas 30% evoluirão com a moléstia e seguirão para algum dos polos da doença.
Manifestações clínicas
A hanseníase é uma doença que afeta, principalmente, o sistema nervoso periférico e a pele. A primeira sensibilidade a ser perdida é a térmica, posteriormente há perda da sensibilidade dolorosa e, por último, há comprometimento da sensibilidade tátil.
Hanseníase indeterminada
Nesse estágio o paciente costuma apresentar poucas lesões, normalmente máculas ou áreas circunscritas, hipocrômicas, com distúrbio de sensibilidade e sudorese. Geralmente, apresenta bordas mal delimitadas e imprecisas. Pode haver alopecia na mancha. Nessa forma, não há espessamento neural.
Hanseníase tuberculoide
A hanseníase tuberculoide é caracterizada por uma boa resposta imunológica por parte do paciente, sendo assim, a doença se vê de forma localizada.
Esse estágio da doença é caracterizado por pequeno número de lesões eritematosas ou acastanhadas, bem delimitadas, com contornos regulares ou irregulares, formando lesões circulares ou geográficas. As lesões podem apresentar um crescimento centrífugo cujo centro torna-se mais claro. Também pode haver alopecia nas placas desses pacientes. Em alguns casos, pequenos nervos espessados podem emergir das placas (lesão tuberculoide “em raquete”). A alteração de sensibilidade nas lesões é bastante acentuada.
Esses pacientes apresentam lesão nos troncos neurais, o que determina alterações não só sensitivas, mas também motoras e autonômicas. As lesões motoras levam a paresias ou paralisias, amiotrofias, retrações tendíneas e fixações articulares. O acometimento dos troncos nervosos é precoce, agressivo e assimétrico. O acometimento dos nervos ulnar e mediano são os mais frequentes.
Nesse estágio da doença não há acometimento de outros órgãos.
Hanseníase virchowiana
A hanseníase virchowiana se observa em pacientes que desenvolveram um maior nível de resposta humoral (Th2) frente ao patógeno. Tal resposta imunológica é de baixa eficácia a microrganismos intracelulares e por este motivo a doença se encontra disseminada nesses pacientes.
No início do quadro, há múltiplas manchas hipocrômicas de limites imprecisos e que, insidiosa e progressivamente, tornam-se eritematosas, ferruginosas e infiltradas. Com a evolução, há surgimento de lesões polimórficas com pápulas, placas, nódulos agrupados e/ou confluentes, distribuídos de forma simétrica por toda a pele. Geralmente, há pouca perda de sensibilidade nas lesões. O comprometimento dos troncos nervosos é difuso e simétrico, e com a evolução da doença, o paciente apresenta anestesia “em luva” e “em bota”.
Caracteristicamente, há infiltração da face e do pavilhão auricular. Também ocorre progressiva perda dos cílios e supercílios (madarose), no entanto, o cabelo do couro cabeludo é mantido. Esse achado recebe o nome de “face leonina”.
Há comprometimento sistêmico de mucosas respiratórias, olhos e outros órgãos, como baço, fígado, rins e testículos.
Hanseníase dimorfa
Os pacientes com hanseníase dimorfa estão no meio do espectro. Essa forma da doença é instável e o paciente por ela acometido, em algum momento, pode migrar para o polo tuberculoide ou para o polo virchowiano.
Os pacientes dimorfo-dimorfo apresentam uma lesão cutânea bem característica, chamadas de “queijo-suiço”. Essas lesões caracterizam-se por placas eritematosas, cujos limites externos são mal definidos, com eritema que se esmaece gradativamente e contrasta com a definição mais acentuada dos limites internos da borda da lesão cutânea. Pode-se encontrar um grau de anestesia no centro das lesões.
Diagnóstico
De acordo com o Ministério da Saúde, o diagnóstico de hanseníase é confirmado se um dos três pontos abaixo estiver presente.
Lesão(ões) e/ou área(s) da pele com alteração da sensibilidade térmica e/ou dolorosa e/ou tátil
Espessamento de nervo periférico, associado a alterações sensitivas e/ou motoras e/ou autonômicas
Presença de bacilos M. leprae, confirmada na baciloscopia de esfregaço intradérmico ou na biopsia de pele
O teste de sensibilidade térmica é o método mais útil para determinar a alterações a este nível, pois esta é a primeira função sensitiva perdida.
A baciloscopia é o exame complementar mais útil para o diagnóstico da hanseníase. O exame não é obrigatório, mas deve ser realizada quando disponível. O resultado negativo reflete um paciente não contaminado ou em estágio com boa resposta imunológica, entretanto, resultado positivo é 100% específico para pacientes contaminados com baixa resposta imune.
O teste de Mitsuda é outro exame complementário que pode ser utilizado. Ele mostra o estado imunológico do paciente, possuindo um caráter prognóstico. Pacientes com boa resposta celular apresentam teste de Mitsuda positivo, enquanto pessoas com baixa resposta imunológica mostram teste de Mitsuda negativo. Pode ser falso positivo em indivíduos que tiveram tuberculose.
Estados reacionais
As reações hansênicas, também chamadas de estados reacionais, são decorrentes de uma exacerbação aguda da imunidade celular (reação do tipo I) ou de acentuada formação de imunocomplexos (reação do tipo II).
Reação do tipo 1
Esta reação está associada à imunidade celular. A característica clínica é que as lesões de hanseníase preexistentes se tornam mais inflamadas. Pode haver certa descamação e até ulceração em algumas lesões. A principal complicação da reação do tipo 1 é a neurite, e esta tende a ser grave e acentuada, ocasionando paralisia súbita e perda de função. Sintomas sistêmicos estão ausentes.
O tratamento da reação do tipo 1 é realizado com prednisona 1 mg/kg/dia ou dexametasona. Para a dor neural, devemos utilizar antidepressivos tricíclicos associados à clorpromazina ou carbamazepina. O paciente deve ser reavaliado semanal ou quinzenalmente. Quando ocorrer melhora da função neural, iniciamos uma redução lenta e gradual da prednisona.
Reação do tipo 2
As reações do tipo 2 também são chamadas de eritema nodoso hansênico. Essas reações são decorrentes de depósitos de imunocomplexos, ou seja, em pacientes que desenvolveram resposta humoral frente a infecção.
É uma reação sistêmica e o paciente frequentemente abre o quadro com sintomas sistêmicos. Do ponto de vista cutâneo, há o surgimento de múltiplas pápulas, placas e/ou nódulos eritematosos que são dolorosos ao toque e distribuem-se por todo o tegumento. As lesões podem tornar-se vesicobolhosas e até ulcerar. Ao exame físico, o paciente pode apresentar hepatoesplenomegalia, neurite, orquite, artrite, irite e iridociclite.
O tratamento de escolha é a talidomida 100 a 400 mg/dia de acordo com a gravidade do quadro. Devemos associar prednisona 1 mg/kg/dia quando há comprometimento neural, de outros órgãos internos ou quando houver ulcerações cutâneas extensas.
A talidomida é a droga de escolha para reação do tipo 2, porém é altamente teratogênica e por esse motivo só podemos prescrever talidomida após excluir a possibilidade de gravidez e se a paciente estiver em uso de pelo menos 2 métodos anticoncepcionais. Caso contrário, tratamos essas pacientes com prednisona ou pentoxifilina.
Clasificação segundo OMS e tratamento
Para simplificar o tratamento nas unidades básicas de saúde, a OMS classifica os pacientes como multibacilares, com mais de 5 lesões de pele ou com baciloscopia de raspado intradérmico positiva, e paucibacilares, com 5 ou menos lesões com baciloscopia de raspado intradérmico negativa.
As medicações são administradas em esquema de poliquimioterapia, e nunca deve ser realizada monoterapia.
A partir de setembro de 2020, a nova orientação do Ministério da Saúde é de que todos os pacientes, tanto paucibacilares quanto multibacilares, sejam tratados com rifampicina (dose única mensal de 600 mg, supervisionada), dapsona (dose diária de 100 mg) e clofazimina (dose de 300 mg, única mensal supervisionada + 50 mg/d).
O tempo de tratamento completo é de seis cartelas, podendo ser tomadas em até 9 meses nos casos de pacientes paucibacilar. Já nos casos multibacilares, o tempo de tratamento é de doze cartelas, podendo ser tomadas em até 18 meses.
Referência:
MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasília). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Diretrizes para vigilância, atenção e eliminação da Hanseníase como problema de saúde pública: manual técnico-operacional, Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.credesh.ufu.br/node/1201>. Acesso em: 22 de agosto de 2021.
MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasília). Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Guia prático sobre a hanseníase, Brasília, 2017. Disponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/novembro/22/Guia-Pratico-de-Hanseniase-WEB.pdf>. Acesso em: 22 de agosto de 2021
SITTAR, José Alexandre de Souza; PIRES, Mário Cezar. Dermatologia na prática Médica. São Paulo: Roca, 2007.
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